Mônica Simões O GOZO MORTIFERO DO CRACK
Como profissional da saúde, pesquisa com adolescentes usuários de drogas/moradores de rua, além de ter desempenhado a função de educadora social por um ano numa unidade 'socioeducativa'l para adolescentes em conflito com a lei – conflito este em sua maioria pelo tráfico ou uso de entorpecentes, tendo como carro chefe o crack, dividirei o que constatei em minha vivência com os “crackeiros” nos últimos anos.
Vivenciamos um caso de saúde pública e de educação, principiada no individualismo, no caos social, e, em hipótese alguma podemos enxergar no usuário de crack, objeto criminal.
Creio haver fases e momentos em nossas vidas. Eu, por exemplo, usei droga quando adolescente e não fiquei maculada como “drogada” ou “toxicomona”, porque o que houve comigo e com a grande maioria dos adolescentes de minha geração foi passageiro. Continuei estudando, trabalhando, e, como muitos amigos, vivenciando meus projetos e ideais. A droga ficou como um momento de desacerto emocional, psíquico, entre mim e o mundo que me rodeava, uma fuga momentânea, rápida.
Mas, há casos em que a dor do viver é tão profunda, tão penetrante, que o indivíduo se torna dependente daquele torpor, daquele estado que ameniza seu sofrimento de viver e é ali num mundo de “viagens” que lhe é mais suave estar. E a mensagem que ele quer passar à família e à sociedade é a de que está doente. E a droga é o meio que encontra para pedir socorro, ajuda, pois quer a suspensão da dor de estar vivo.
O viciado em crack busca um sofrimento menor do que o vivenciado sem a droga, uma proteção para sua decadência moral e emocional. O crack passa a ser o analgésico para enfrentar o dia a dia, pois viver é muito doído, custoso e difícil, ainda mais de forma íntegra e digna. Integridade, dignidade: ... famílias desestruturadas, barracos deslizando morro abaixo, segregação racial e social, desemprego, latas vazias, violência policial, necessidades várias e excessos de faltas. Resiste-se por algum tempo nas migalhas do Estado, inserindo-se nas franjas sociais, até que se sucumbe e ponto.
O jovem pobre, negro, favelado e morador das periferias está fora do mercado digno de trabalho, está fora dos espaços sociais, está fora de ter, de ser alguém, ele está fora, ele está fora... Ele só está dentro é do “movimento” das bocas, dos “centros socioeducativos” e das cadeias, ajudando em sua superlotação. E saem e voltam para esses espaços com uma facilidade assustadora, provando para quem queira ver, o fracasso da penalização do traficante e do usuário de drogas. E se conseguir se manter sem recaídas aqui fora, ainda assim, continuará excluído, porque isso de 'reinserção social' é balela, letra morta, coisa de ONGs com outros interesses, pois não se reinsere quem nunca esteve inserido.
As drogas sempre foram usadas por todas as classes sociais, por ricos e pobres, mas associadas às minorias: ópio aos chineses, maconha aos mexicanos, cocaína aos negros e favelados, crack aos miseráveis. Daí, explica-se tantas prisões de pobre e preto.
Estamos caminhando para o caos social e a situação é dramática. Esses meninos e meninas pobres com as pontas dos dedos amareladas pelo uso do crack, nada mais são que o efeito colateral de uma sociedade omissa para com a população que vive em favelas e periferias dos grandes centros, que sobrevivem e se viram como camelôs, traficantes, gerentes de bocas, prostitutas, “catireiros” e tantas outras "funções". A vida digna é inviabilizada devido a este sistema excludente, que coloca à deriva essa parcela – dentre outras - de jovens e adolescentes pobres e miseráveis. Não faltam leis, não faltam planos, faltam debates políticos sérios. Os discursos que tenho ouvido acerca desse problema, são simplistas demais e soam ainda como ferramenta para a legitimação das desigualdades sociais, numa retórica conservadora e preconceituosa, que apenas demonstra a irracionalidade política que inferioriza e criminaliza a pobreza. Os jovens pobres e negros sofrem então duas vezes: uma pela mão do Estado e outra pela criminalização de sua condição social e cor.
Em 1994, havia cerca de 110 mil presos no Brasil. Hoje, este número é cinco vezes maior. Creio se dever a uma política preventiva, que trabalha o conflito social pelo olhar penal. Confundem justiça com punição e punição com privação de liberdade e nem imaginam o que rola dentro das prisões. Essa política de prender leva-me a crer na imagem da demonização das áreas faveladas, o “grande vetor para encarceramento da população pobre”. E, aos usuários presos, não é dado novas oportunidades, nem quando estão sob liberdade, pois ficam de fora de todas as dimensões de reparação para com ele, que também é vítima, apesar de transgressor de leis e regras do convívio social.
É preciso retomar discussões mais sérias acerca deste assunto, de forma menos reacionária e eleitoreira.
Talvez penas alternativas para o pequeno e médio traficante, controle sobre o consumo pessoal, redução de danos de quem usa o crack e acolhimento no tratamento voluntário seja o início de uma discussão real, voltada não para as elites, mas para os interessados em modificar este quadro triste que estamos ajudando a esboçar com nossa visão torpe, defeituosa, ignorante e egoísta.
Essa galera que está aí pelas ruas, perambulando como zumbis, nada mais são que vítimas desta esquizofrenia da era moderna, desse sistema que a muitos mata e a poucos basta. Necessário se faz outra visão e outro viés discursivo. O acesso ao crack é fato, tornando-se impossível controlar a demanda de compra e venda, o mercado de oferta e procura... é o capitalismo né?! Mesmo para os miseráveis há que existir o consumo. Precisamos analisar em que contexto seria menos mal lidar com a realidade do acesso a esta droga, focando os usuários como objeto de saúde pública e educação e não como casos de polícia.
Não nos livraremos dos efeitos destrutivos do crack, mas poderemos aprender a conviver melhor com seus usuários e tentar minimizar o sofrimento humano que seu abuso provoca.
Eu convivi com eles, os “crackeiros”, ouvi suas histórias, suas dores, suas neuroses, seus choros, gritos e desesperos. Vi seus surtos, suas insônias, suas saídas, suas misérias, suas recaídas, seus retornos, suas tristezas e suas mortes. Acho-os sobreviventes do caos urbano e social, guerreiros confusos que não aceitaram de pronto o papel que a sociedade lhes deu, preferindo muitas vezes o ato infracional, a fuga através da droga ou a morte à indignidade de viver sem integridade. Honestamente... não sei se faria diferente no lugar deles...
Mônica
Como profissional da saúde, pesquisa com adolescentes usuários de drogas/moradores de rua, além de ter desempenhado a função de educadora social por um ano numa unidade 'socioeducativa'l para adolescentes em conflito com a lei – conflito este em sua maioria pelo tráfico ou uso de entorpecentes, tendo como carro chefe o crack, dividirei o que constatei em minha vivência com os “crackeiros” nos últimos anos.
Vivenciamos um caso de saúde pública e de educação, principiada no individualismo, no caos social, e, em hipótese alguma podemos enxergar no usuário de crack, objeto criminal.
Creio haver fases e momentos em nossas vidas. Eu, por exemplo, usei droga quando adolescente e não fiquei maculada como “drogada” ou “toxicomona”, porque o que houve comigo e com a grande maioria dos adolescentes de minha geração foi passageiro. Continuei estudando, trabalhando, e, como muitos amigos, vivenciando meus projetos e ideais. A droga ficou como um momento de desacerto emocional, psíquico, entre mim e o mundo que me rodeava, uma fuga momentânea, rápida.
Mas, há casos em que a dor do viver é tão profunda, tão penetrante, que o indivíduo se torna dependente daquele torpor, daquele estado que ameniza seu sofrimento de viver e é ali num mundo de “viagens” que lhe é mais suave estar. E a mensagem que ele quer passar à família e à sociedade é a de que está doente. E a droga é o meio que encontra para pedir socorro, ajuda, pois quer a suspensão da dor de estar vivo.
O viciado em crack busca um sofrimento menor do que o vivenciado sem a droga, uma proteção para sua decadência moral e emocional. O crack passa a ser o analgésico para enfrentar o dia a dia, pois viver é muito doído, custoso e difícil, ainda mais de forma íntegra e digna. Integridade, dignidade: ... famílias desestruturadas, barracos deslizando morro abaixo, segregação racial e social, desemprego, latas vazias, violência policial, necessidades várias e excessos de faltas. Resiste-se por algum tempo nas migalhas do Estado, inserindo-se nas franjas sociais, até que se sucumbe e ponto.
O jovem pobre, negro, favelado e morador das periferias está fora do mercado digno de trabalho, está fora dos espaços sociais, está fora de ter, de ser alguém, ele está fora, ele está fora... Ele só está dentro é do “movimento” das bocas, dos “centros socioeducativos” e das cadeias, ajudando em sua superlotação. E saem e voltam para esses espaços com uma facilidade assustadora, provando para quem queira ver, o fracasso da penalização do traficante e do usuário de drogas. E se conseguir se manter sem recaídas aqui fora, ainda assim, continuará excluído, porque isso de 'reinserção social' é balela, letra morta, coisa de ONGs com outros interesses, pois não se reinsere quem nunca esteve inserido.
As drogas sempre foram usadas por todas as classes sociais, por ricos e pobres, mas associadas às minorias: ópio aos chineses, maconha aos mexicanos, cocaína aos negros e favelados, crack aos miseráveis. Daí, explica-se tantas prisões de pobre e preto.
Estamos caminhando para o caos social e a situação é dramática. Esses meninos e meninas pobres com as pontas dos dedos amareladas pelo uso do crack, nada mais são que o efeito colateral de uma sociedade omissa para com a população que vive em favelas e periferias dos grandes centros, que sobrevivem e se viram como camelôs, traficantes, gerentes de bocas, prostitutas, “catireiros” e tantas outras "funções". A vida digna é inviabilizada devido a este sistema excludente, que coloca à deriva essa parcela – dentre outras - de jovens e adolescentes pobres e miseráveis. Não faltam leis, não faltam planos, faltam debates políticos sérios. Os discursos que tenho ouvido acerca desse problema, são simplistas demais e soam ainda como ferramenta para a legitimação das desigualdades sociais, numa retórica conservadora e preconceituosa, que apenas demonstra a irracionalidade política que inferioriza e criminaliza a pobreza. Os jovens pobres e negros sofrem então duas vezes: uma pela mão do Estado e outra pela criminalização de sua condição social e cor.
Em 1994, havia cerca de 110 mil presos no Brasil. Hoje, este número é cinco vezes maior. Creio se dever a uma política preventiva, que trabalha o conflito social pelo olhar penal. Confundem justiça com punição e punição com privação de liberdade e nem imaginam o que rola dentro das prisões. Essa política de prender leva-me a crer na imagem da demonização das áreas faveladas, o “grande vetor para encarceramento da população pobre”. E, aos usuários presos, não é dado novas oportunidades, nem quando estão sob liberdade, pois ficam de fora de todas as dimensões de reparação para com ele, que também é vítima, apesar de transgressor de leis e regras do convívio social.
É preciso retomar discussões mais sérias acerca deste assunto, de forma menos reacionária e eleitoreira.
Talvez penas alternativas para o pequeno e médio traficante, controle sobre o consumo pessoal, redução de danos de quem usa o crack e acolhimento no tratamento voluntário seja o início de uma discussão real, voltada não para as elites, mas para os interessados em modificar este quadro triste que estamos ajudando a esboçar com nossa visão torpe, defeituosa, ignorante e egoísta.
Essa galera que está aí pelas ruas, perambulando como zumbis, nada mais são que vítimas desta esquizofrenia da era moderna, desse sistema que a muitos mata e a poucos basta. Necessário se faz outra visão e outro viés discursivo. O acesso ao crack é fato, tornando-se impossível controlar a demanda de compra e venda, o mercado de oferta e procura... é o capitalismo né?! Mesmo para os miseráveis há que existir o consumo. Precisamos analisar em que contexto seria menos mal lidar com a realidade do acesso a esta droga, focando os usuários como objeto de saúde pública e educação e não como casos de polícia.
Não nos livraremos dos efeitos destrutivos do crack, mas poderemos aprender a conviver melhor com seus usuários e tentar minimizar o sofrimento humano que seu abuso provoca.
Eu convivi com eles, os “crackeiros”, ouvi suas histórias, suas dores, suas neuroses, seus choros, gritos e desesperos. Vi seus surtos, suas insônias, suas saídas, suas misérias, suas recaídas, seus retornos, suas tristezas e suas mortes. Acho-os sobreviventes do caos urbano e social, guerreiros confusos que não aceitaram de pronto o papel que a sociedade lhes deu, preferindo muitas vezes o ato infracional, a fuga através da droga ou a morte à indignidade de viver sem integridade. Honestamente... não sei se faria diferente no lugar deles...
Mônica
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