“Se seguíssemos com a política de FHC, o Brasil teria quebrado”, diz Lula a revista americana
Em entrevista à New Yorker - parte de um extenso artigo sobre a história recente da política brasileira - ex-presidente fala das diferenças com Fernando Henrique Cardoso, de aliados como Dilma Rousseff, José Dirceu e Antonio Palocci, e dos problemas que enfrentou na relação com Estados Unidos e Irã
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi um dos entrevistados do jornalista e escritor Nicholas Lemann para um extenso artigo sobre o Brasil na revista americana The New Yorker. O texto chama-se "A Ungida", referência à presidente Dilma Rousseff, e tem como foco os desafios de uma "ex-radical" no comando de um país que enfrenta um "boom econômico".
Muito além de um perfil de Dilma, Lemann faz uma rica análise sobre a recente história política e econômica do Brasil, da ditadura militar ao governo Dilma, passando com detalhes pelo combate à inflação protagonizado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também entrevistado. Até Sérgio Cabral Filho, governador do Rio de Janeiro, falou dos desafios de sediar as próximas Olimpíadas e o final da Copa do Mundo - o repórter visitou uma favela pacificada, Santa Marta, na Zona Sul do Rio, e falou da recente ocupação da Rocinha, na mesma região.
A entrevista mais reveladora, porém, é a do ex-presidente Lula. Os assuntos tratados são variados - das diferenças com seu antecessor FHC aos desentendimentos com Estados Unidos e países da Europa no caso das sanções ao Irã do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Lula também fala de Dilma Rousseff e dos parceiros históricos José Dirceu e Antonio Palocci. "Ele cometeu erros que não deveria ter cometido", disse Lula sobre o último.
Abaixo, os principais trechos da entrevista de Lula à The New Yorker.
Fernando Henrique Cardoso
“Se seguíssemos com a política de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil teria quebrado. O Brasil deu certo apenas porque mudamos suas políticas. A única coisa que mantivemos foi a responsabilidade fiscal. Uma coisa – é tudo. O que aconteceu depois do controle da inflação? Nos tornamos ativos na política internacional. O Brasil por muitos anos não teve uma política de investimentos. Nenhuma habilidade para criar empregos. Nenhuma política de redistribuição de renda. Percebi que não tinha sido eleito para brigar com meu antecessor. Não tinha tempo para brigar com ele, então decidi governar o país.”
Desafios no governo
“(Minha visão política) mudou porque, ser presidente é como ser um pai. Quando você é filho, pensa que seu pai tem todo o dinheiro do mundo pra te dar. Quando você está na oposição, ou é líder sindical, diz que o governo tem todo o dinheiro do mundo. Quando você vai pro governo, descobre que o governo não tem todo o dinheiro que você pensava, e tem contas que são 20 vezes mais do que você pode pagar. Percebi que a economia não é tão fácil quanto eu pensava ser quando era líder sindical, mas também descobri que não era tão difícil quanto diziam alguns políticos. Temos que distribuir a riqueza para crescer. Os economistas estão sempre se doendo com isso. Provamos que é possível crescer, distribuir renda, e fazê-lo com inclusão social e sem inflação.”
Relações internacionais
“Descobri a inveja entre os políticos. Os que estão sentados à mesa, compartilhando o banquete, não querem que mais ninguém aproveite. Pensava que o Brasil tinha certos limites (na relação) com os Estados Unidos, que têm mais tecnologia e compete conosco no setor agrário. Então, o que precisávamos fazer? Procurar parceiros semelhantes ao Brasil. Então fomos procurar América Latina, África, Oriente Médio e Ásia. O Brasil tem a oportunidade de crescer em parceria com países parecidos com o Brasil (...) Falei muitas vezes com Bush e Obama. Eu disse: ‘Como vocês não conseguem enxergar a América Latina de hoje diferente de como era nos anos 60? Não acredito que vocês não conseguem imaginar o Brasil de hoje. Ouvi políticos dizerem que deveriam tratar o Brasil como qualquer outro país pequeno’. Mas todo mundo deve ser tratado com respeito. Talvez eu não tenha atingido meu objetivo. O jogo internacional não é fácil.”
ONU
“Não temos o direito de manter a mesma visão de mundo que tínhamos em 1948. Como, em 1948, as Nações Unidas foram expertas o bastante para criar o Estado de Israel e em 2011 não é experta o bastante para criar o Estado Palestino? Como as Nações Unidas permitiram que a Otan fizesse o que fez na Líbia em vez de trazer a Líbia para a mesa de discussão?”
Ahmadinejad e o Holocausto
“Vou contar um episódio sobre o Irã. Vou carregar isso para o resto da minha vida. Nunca tinha conversado com o (Mahmoud) Ahmadinejad (presidente iraniano). Ele pediu para se encontrar comigo em Nova York. Depois da conversa, a primeira coisa que perguntei a ele foi: ‘Senhor presidente, é verdade que você não acredita no Holocausto? Se é verdade, você é o único que não acredita’. E ele disse: ‘O que eu quis dizer foi que na Segunda Guerra Mundial setenta milhões de pessoas morreram e os judeus pensam que foram os únicos a morrer’. Eu disse: ‘Se é isso que você quer dizer, então diga. Setenta milhões de pessoas morreram. Os seis milhões de judeus não morreram. Foi um genocídio. Eles não estavam lutando’. Assim foi nossa primeira conversa. Depois, na reunião do G-20, falei com Obama, Sarkozy, Merkel, Brown, Berlusconi. Disse: ‘Por que vocês não conversaram com o Ahmadinejad? Você não pode fazer política sem falar com as pessoas’. Eles assinaram o tratado sobre proliferação de armas nucleares, exatamente o que o Conselho de Segurança queria que eles fizessem. Mas para minha surpresa eles decidiram manter sanções, como uma punição ao Irã. Por que? Porque não foram eles que costuraram o acordo? Essa foi a primeira vez que tive a sensação de que a inveja na política é um assunto muito delicado”.
Dilma Rousseff, José Dirceu e Antonio Palocci
“Conheci Dilma Rousseff um pouco antes de ser eleito, em 2002. A primeira vez que conversamos, quando eu estava elaborando meu programa energético, decidi que ela seria minha ministra de Minas e Energia. José Dirceu um amigo, fundou comigo o Partido dos Trabalhadores. Um companheiro. O Antonio (Palocci) é um dos companheiros mais inteligentes que conheço. Ele cometeu erros que não deveria ter cometido. Ambos estão longe da política temporariamente, e Dilma Rousseff é nossa presidente. Eu respeito muito a todos eles e, com relação a Dilma, eu também admiro sua competência, sua lealdade e sua determinação”.
Futuro na política
“Não existe isso de se afastar para sempre da política. Só a morte pode tirar um político da política para sempre. Veja o Jimmy Carter: ele teve um governo falho, e agora é melhor ex-político na política. Admiro muito ele. E Clinton – ele nunca perderá sua importância. Então o que vai acontecer no futuro? Eu não sei. Já cumpri meu papel no Brasil. Assim como não tenho coragem de dizer que vou concorrer a algo em algum momento, não tenho coragem de dizer que não farei. Se a presidente Dilma quer disputar a reeleição, é seu direito. Só existe uma maneira de ela não disputar a reeleição: Ela não querer. (...) Eu vou continuar na política, vou continuar viajando. Estive em 21 países só nesse ano. (...) Não nasci político. Estava fora da política até meus 31 anos. Mas sei que vou morrer político. É a minha vocação.” O ex-presidente Fernando Henrique também foi ouvido pela reportagem. Ele falou sobre os conselhos de Lula para Dilma enfrentar as denúncias de corrupção no governo e as quedas de ministros. E falou sobre a intervenção do Estado na economia.
As denúncias de corrupção
“O presidente Lula diria ‘Não é bem assim, ele é um bom homem’. A presidente Dilma não compartilha dessa posição. Eu não sei se ela terá forças para ir em frente. Ela começa dizendo que esse é o momento de fazer a limpeza, limpar tudo, mas não sei se ela sabe o quanto é difícil fazer essa limpeza, porque o sistema está arraigado, essa divisão de poder entre grupos e partidos diferentes. Poder significa controle dos benefícios do governo. É difícil controlar uma parte sem destruir o sistema. Lula aconselhou-a a não ir tão rápido. Na verdade, talvez ele esteja certo”
Capitalismo e burocracia
“Não sabemos ainda em que medida o capitalismo competitivo está fazendo progressos ou se o velho modelo de capitalismo burocrático ainda está vivo. É uma mistura entre esses dois. Desde que a China tornou-se um modelo tão atraente – e a China tem esse modelo de economia controlada pelo Estado – isso justifica isso aqui no Brasil para muitas pessoas. Mas em nosso caso é um retrocesso”.
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